Com as mãos para trás, andava um senhor, que amava amendoim

Sayuri
4 min readJul 27, 2021

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63 anos de diferença. Engraçado, saidero, popular, ativo e bem-humorado. O oposto de mim.

Esse era meu Ditian, que viveu longos oitenta e nove anos, dirigindo até pouco mais de oitenta, frequentando os karaokês da vida, pescando no meio do mato e comendo bastante.

Desde o dia que eu soube que ele estava doente, eu comecei a viver o luto. Descobri que sou aquele tipo de pessoa que antecipa isso. Eu já imagino o momento da notícia, penso em quais coisas terei que fazer e me despeço, mentalmente, todos os dias que me encontro com a pessoa — ou com o cachorro.

Nesse meio tempo, me senti arrependida de todas as vezes durante a adolescência que não quis passar o Réveillon na família para ver os amigos. Entristeci porque senti que não fomos próximos na conversa, que não tentei o suficiente e porque eu não sabia a cor preferida dele. Caramba, mas essa história da cor preferida me pegou tanto!

Sempre nas visitas nos últimos meses, eu tentava fazer piadas pra ele rir e, no final das contas, ele é quem me fazia gargalhar com as respostas inesperadas que me dava. Mesmo mais fraquinho, esse velhinho era mesmo incrível e ainda tinha um humor inigualável diante de todas as adversidades, seja com os netos, com os filhos e com as enfermeiras. Que pessoa!

Porém, a sensação de culpa perdurava. Conversei com os meus irmãos, com a minha prima e as coisas ainda não pareciam se encaixar tanto assim.

Até que um sábado de manhã fui acordada com a notícia: ele se foi.

Pela segunda vez de 2018, depois de 15 longos anos, senti o peso da morte de um ente querido.

Quando já somos adultos, toda experiência triste tem um impacto muito maior; já o impacto da felicidade parece que chega tão ínfima e precisa-se de muito para causar aquele brilho nos olhos ao ver um doce quando criança. Que pena que somos assim, né?

Enfim, a tristeza veio, a estranheza tomou conta e o vazio permanece…

No dia de sua morte, soube que ele sempre usava um perfume Hugo Boss. Descobri que ele passava antes de sair, até mesmo para ir em uma consulta no hospital. Era isso, mais uma característica diferente de mim: vaidosíssimo.

Depois, vi os amendoins pra ele e pensei: tínhamos algo em comum, que era gostar dessas coisas.

Fui para casa dele e vi os DVDs de karaokê. Lembrei do velhinho andando e cantarolando, assistindo à TV sentado na poltrona e pensei: tá aí, mais alguns gostos em comum.

Lembrei de ele mexendo os cachorros, roncando e balançando na rede. De ele me oferecendo comida e pegando a minha, só de pirraça. Olha só, mais tantas coisas que compartilhamos juntos!

Lembrei de quando ele veio para a minha cidade e foi me buscar na escola, dos carros que ele teve e do aniversário de 80 anos. Olhei para o Pikachu de pelúcia na minha estante que ele me deu, e sorri.

Até que cheguei na memória mais antiga que tenho dele: cantando uma música japonesa e, na hora do “pon ko pon no pon”, ele batia a própria barriga e eu rachava o bico.

https://www.youtube.com/watch?v=_vj5K2JIGLM

E aí meu coração se acalmou.

Eu entendi que posso não saber se ele tinha uma cor preferida dele. Mas eu soube, vi e vivi, mesmo morando longe, vários momentos pelos quais ele sorria; várias outras coisas que ele fazia e, principalmente, fui mais uma pessoa que ele se esforçou pra cuidar ou simplesmente tirar uma gargalhada.

Que honra!

A última foto que eu tirei dele, eu apontei o celular e ele me disse: não pode tirar foto, não, Sayuri. Retruquei: por que não? E aí ele me disse, já dando risadas: porque vou ficar muito bonito.

Nesse segundo, eu apertei o botão e ele saiu rindo. Eu só consigo pensar: pois é, você tinha razão. Não é que ficou bonito mesmo?

Como todo mundo diz, a morte é a única certeza da vida, mas é a coisa mais esquisita desse mundo. A gente sofre, chora de saudades antecipadas, chora por nunca mais poder tocar a pessoa… até que um dia a gente chora de saudade, mas ri e sorri das boas lembranças. Fica o lembrete pra mim e pra você que está lendo: aproveita as pessoas, as suas pessoas. As experiências com elas. Os momentos. Elas são tudo mesmo.

Ditian, arigatou por ter sido quem foi para mim e para tanta gente. Fui longe de ser a neta mais presente, mas que boas lembranças tivemos.

Eu sei que um dia a gente ainda vai se encontrar… mas, enquanto isso não acontece, aproveita pra rir com a Bá, pra comer bastante e fazer todo mundo rir. ❤

Eu continuo rindo e sorrindo quando penso em você por aqui. Que nem nessa foto aqui.

Feliz Dia dos Avós por aí.

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Sayuri

Relações-públicas que faz desabafos e devaneios por aqui. Feminismo, diversidade, cultura nerd e perrengues do cotidiano estão presentes.